"Vivemos ainda nesse estranho regime que associa a moralidade à crença religiosa, como se existisse alguma relação entre religiosidade e comportamento moral, como se não soubéssemos nada sobre a lambança feita pelos padres com as crianças e adolescentes – para não falar dos séculos de lambança obscurantista e anticientífica promovida pelas religiões..." Idelber Avelar

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

DEBATE ENTRE UM CRISTÃO E UM ATEU (II) - POR ASSIS UTSCH

Debate entre um cristão e um ateu (II)
(Assis Utsch)
Prosseguindo no debate entre Hitchens e D’Souza, observo que segundo este último, aos ateus só bastaria não crer. Neste caso, aos crentes bastaria também apenas crer, já que seu Deus existe. E no entanto desde sempre eles têm pregado, doutrinado, matado, flagelado, torturado, estripado, queimado, guerreado, enfim dezenas de milhões foram sacrificados e mortos em nome do Deus. (Ele próprio, sendo um religioso convicto, apoiou a guerra EUA-Iraque, onde morreram mais de 150 mil pessoas). Por outro lado, quando um religioso me aborda na praça, na rua, nos auditórios, em toda parte, eles não o fazem querendo meu bem. Eles querem sobretudo duas coisas: impor a mim suas ideias religiosas e depois colher também meu dinheiro. D’Souza, apesar de seu brilhantismo, esqueceu-se dessa questão, o ‘desejo do reconhecimento’, ou a ‘luta pelo reconhecimento’, conforme abordado largamente por Francis Fukuyama em O Fim da História e o Último Homem. O desejo ou a luta pelo reconhecimento são próprios da natureza humana. Então, é legítimo que o ateu lute pelo reconhecimento de suas convicções, sobretudo porque ele está convencido de que a verdade do crente é uma superstição.
Sobre a alegada racionalidade do Universo, condição que nos teria assegurado a vida, Hitchens responde usando um argumento de Dawkins: ao contrário de acharmos que o Universo foi arranjado por um Deus para nos assegurar a vida, o mais lógico é pensarmos de outro modo. Só estamos aqui porque o arranjo cosmológico aleatoriamente estabelecido permitiu que moléculas pré-biológicas se tornassem biológicas.
Uma questão que Hitchens poderia ter lembrado, mas não mencionou, é que a fé, além de ser fruto dos medos e das mil e uma angústias do homem, nasce também das compulsões pelo transcendente, das compulsões por idolatrar; e das idiossincrasias próprias de cada pessoa. E se perpetua graças às tradições, costumes, doutrinação, educação, condicionamentos culturais, etc.
Temos depois outra alegação de D’Souza – nos últimos 500 anos a grande maioria dos cientistas era de cristãos. Curiosamente, menciona Galileu, que só não foi queimado porque no último momento renegara o que dissera. Mas nosso pensador cristão não disse que 93% dos cientistas indicados para a Academia Americana de Ciências são ateus. Isto é, quando algum deles é indicado para presidir a instituição, este deixa de ser ateu – para não perder as verbas que seriam negadas pelos congressistas do Talibã cristão-americano. Ademais, temos que observar que se ainda hoje há uma enorme indisposição em relação aos ateus, como é que alguém poderia esboçar seu ateísmo nos séculos passados? Em face dos dogmas que cercam as religiões, naquela época seria também infinitamente mais difícil ter uma compreensão mais clara de que as religiões são superstições; ou de que os livros santos são fábulas e mitologias milenares; ou que Deus é uma invenção de homens primitivos mantida pelo homem moderno por razões de conveniência; etc.
D’Souza disse que não traria ao debate qualquer argumento teológico, isto é, aqueles vindos dos livros santos, com milhares de contradições. Já os tão decantados valores cristãos, melhor seria dizer que esses valores, em grande parte, vêm do Iluminismo. Ainda que algumas concepções cristãs tenham sido adotadas pelos iluministas, foram estes últimos que começaram se rebelando contra o ambiente exacerbadamente religioso, intolerante e supersticioso então reinante na Europa. Efetivamente, os iluministas estabeleceram valores novos e ainda denunciaram aqueles mais perversos do cristianismo, como a servidão, a flagelação, a culpa, etc.
Apesar de o cristianismo ter nascido entre a população escrava e subalterna das sociedades – donde seu servilismo – só no fim do século XIX é que os cristãos vieram a se colocar contra a escravatura. E a intolerância em relação às mulheres, diferentemente do que D’Souza diz, é tão flagrante que George W. Foote disse: “As mulheres ainda sentirão orgulho por não terem escrito sequer uma linha da Bíblia”.
D’Souza ainda repete o personagem de Dostoievski: “Se Deus Não existe, tudo é permitido”. Ora, o pensador aqui passa ao largo do fato de que é a própria necessidade da boa convivência humana que induz os homens a serem éticos.

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